segunda-feira, 15 de abril de 2013

Além das carruagens de fogo - Vangelis, 70 aninhos


Texto publicado originalmente em 29/03/13, como colaboração para I Want To Be A Machine


No dia 29 de abril de 1943, há exatas 70 primaveras – ou outonos, se considerarmos a estação do mês –, nascia o músico e compositor grego Vangelis. O nome dele deve parecer familiar a você. Se não, vou ajudá-lo com algumas palavras-chave: maratona, trilha sonora, Olimpíadas. Ainda difícil? Vamos, faça um esforço: imagine-se correndo por uma estrada, ou uma praia deserta, onde preferir. Agora deixe a cena em câmera lenta. Que música você colocaria ao fundo para dar um clima? Ahá, acho que adivinhei. Se nada ainda lhe veio à mente (não é querendo subestimar sua inteligência mas já subestimando), recorde a performance do Rowan Atkinson durante a abertura dos Jogos Olímpicos de Londres e grite "BINGO!" 

Até o Mr. Bean tá ligado nas parada

Estas referências, tanto do imaginário popular quanto da mídia, nem de longe podem mensurar o patamar alcançado por Chariots of Fire na cultura pop e na música em geral. A influência é tanta que grande parte das pessoas acaba esquecendo que por trás de um elemento tão icônico há uma pessoa, com nome, sobrenome e muitos outros trabalhos interessantes, até melhores na minha humilde opinião. No caso, Evángelos Odysséas Papathanassiou (repita tudo bem rápido três vezes sem morrer sufocado), ou simplesmente Vangelis. Tal fenômeno não ocorre apenas com Chariots of Fire, cuja trilha sonora deu a Vangelis, em 1982, o Óscar de Melhor Trilha Sonora Original: tenho certeza de que em algum momento da vida você ouviu alguma música do Vangelis sem saber que era dele. Ele parece ser o preferido de programas esotéricos de rádio e policiais da TV, por exemplo (exemplos no fim do post, aguarde).
Agora que você foi avisado que o tio Evángelos observa todos os seus passos em segredo (MEDA!11!), vou parar de fazer rodeios; vamos saber mais sobre essa joia do Mediterrâneo, esse glorioso filho do deus Apolo, esse... Ok Jennifer, o pessoal já entendeu.
Nascido em Vólos, na Grécia, Vangelis pode ser considerado um talento genuíno. Desde pequeno mostrou aptidão para a música. Ele sempre conta em entrevistas sobre memórias mais tenras: a imagem de si mesmo aos quatro anos, sentado ao piano, tocando sem a ajuda de ninguém. Nessa idade ele começou a compor e não parou mais, sendo dois anos mais tarde aceito em uma escola de música em Atenas. Um fato curioso é que Vangelis nunca aprendeu a ler notação musical; sua capacidade de percepção era tal que ele tocava as músicas "de cabeça", sem haver a necessidade de acompanhar a partitura. De fato, o autodidatismo e o individualismo influenciaram acentuadamente as composições de Vangelis ao longo da carreira.



O som de Vangelis é geralmente taxado de New Age, mas não se engane; artista completo como é, sua obra não pode ser limitada de tal forma. Nos anos 1960 o músico passou pelo grupo The Forminx, de veia pop, e posteriormente pelo Aphrodite's Child, banda grega de rock progressivo formada em Paris. Foi como membro do Aphrodite’s que o talento de Vangelis adquiriu notoriedade internacional; após o fim do grupo, em 1972, Vangelis se dedicou à carreira solo e pode alçar voos mais altos. Esta nova fase de produção musical ficou marcada pela sonoridade eletrônica, com o uso promissor de sintetizadores. No entanto, Vangelis nunca aderiu a rótulos; ele possui trabalhos que vão desde o flerte com o rock progressivo e com a música étnica grega (Earth, o primeiro álbum solo) ao experimentalismo (Invisible Connections e Beaubourg, os mais controversos da discografia). Com preferência por temas cósmicos e peças instrumentais, Vangelis se consolidou como grande expoente da música ambiente. Até hoje ele é consagrado por suas trilhas sonoras, ramo pelo qual enveredou antes da carreira solo; além de Chariots of Fire (1981), pode-se destacar a trilha do filme Blade Runner e a de 1492 – Conquest of Paradise. Outros trabalhos de música incidental dignos de nota são o da série de TV Cosmos, o tema da Copa do Mundo de 2002 e os documentários de Frédéric Rossif sobre a vida selvagem, como L'Apocalypse des animaux.
Nos últimos anos, Vangelis tem se dedicado como nunca a trilhas para filmes e documentários. Ele também trabalhou em relançamentos de seus maiores sucessos, como a edição de aniversário de Blade Runner (2007) e a versão de Chariots of Fire para o teatro, datada do ano passado. Para comemorar seu aniversário e os mais de 50 anos de carreira, segue uma pequena playlist de introdução à obra do mestre. Fica como aperitivo, já que a discografia é gigante, sem contar os trabalhos anteriores e as colaborações (eu mesma não posso afirmar com prioridade que ouvi tudo). Procurei fugir do óbvio, afinal um dos objetivos é mostrar que a relevância da obra de Vangelis pode ser exemplificada em suas músicas mais famosas, mas não limitada a elas.
Você, fã do Vangelis ou não, que por acaso esbarrou com este humilde texto nas ondas da interwebs, não se acanhe: desça a lenha deixe sua opinião e sugestões nos comentários. Agora cheguem mais, entre na carruagem e vamos lá!

Discretamente observando os pobres mortais


Spiral (1977)


Este foi o primeiro álbum de Vangelis que ouvi. Não poderia haver começo melhor; é uma das joias mais brilhantes da coleção. Aqui, Vangelis demonstra total domínio dos sintetizadores e cria uma atmosfera inigualável, que envolve o ouvinte da primeira à última faixa. É um trabalho que denota de maneira magistral os aspectos sonoros que consagraram o artista: som essencialmente eletrônico, futurista, inspirado por um conceito cósmico – no caso o da filosofia taoísta, onde a natureza do universo se move em uma dança de espirais.
Fica To The Unknown Man como preview do álbum. Uma dica: ouça com lencinhos ao lado. É uma tapa com luva de pelica em quem afirma que sintetizadores não são instrumentos de verdade e por isso incapazes de suscitar emoções genuínas.

Gostou? Outros destaques: Dervish D e Spiral.


Albedo 0.39 (1976)


A trilha sonora perfeita para uma viagem espacial: esse é o Albedo. Um clássico definitivo da discografia do Vangelis, sem dúvida. A popularidade das faixas comprova isso; aposto que Alpha serviu de música de fundo para todos os programas de rádio religiosos do mundo, sem contar os de horóscopo. Para compor o álbum, Vangelis se baseou na astronomia e na física especial, inclusive tendo algumas das músicas incluídas em episódios da supracitada série Cosmos, de Carl Sagan. Daqueles discos para apreciar sem interrupções, com fones de ouvido, imerso nas nuances sonoras. Dá para imaginar uma aventura de ficção científica ouvindo o Albedo 0.39.
Ouça a primeirona, Pulstar, e verifique que eu não exagerei.

Gostou? Outros destaques: Alpha, Main Sequence, Nucleogenesis (partes 1 e 2).


Blade Runner (1994)


Tão célebre quanto Chariots of Fire, Blade Runner chega a ser uma obra-prima à parte do filme que a originou, a adaptação homônima do diretor Ridley Scott para o livro Do Androids Dream of Electric Sheep?, de Philip K. Dick. A despeito de o filme ter sido lançado em 1982, a versão oficial da trilha sonora saiu apenas em 1994, tendo algumas faixas divulgadas em compilações anteriores. Com sintetizadores soturnos e melodias que evocam uma erudição melancólica, Vangelis construiu um trabalho que casa perfeitamente com o futurismo decadente da película. É possível se sentir na pele do policial Deckard, preso na Los Angeles pós-apocalíptica, tomado por um misto de angústia e esperança. Cuidado com os replicantes à solta por aí...
Bem, tudo o mais que eu disser parecerá redundante para descrever a qualidade e a importância desta obra de arte. Sinta o gostinho com BladeRunner (End Titles) e a música falará por si só. 

Gostou? Outros destaques: T.O.D.A.S.
Obs.: Vale ouvir a edição de 25 anos do álbum, lançada em 2007. Ela contém 3 CDs, sendo os dois últimos com material inédito.


Direct (1988)


Após uma breve pausa na produção, durante a qual o famoso estúdio Nemo em Londres fechou as portas, Vangelis retornou com este álbum. Em minha opinião ele é um dos mais subestimados da discografia. É o marco de uma nova fase na composição musical de Vangelis: há a predominância dos sintetizadores, porém em um formato mais popular – o que não significa que tenha perdido a qualidade, muito pelo contrário. Direct tem pouquíssimo em comum com o trabalho anterior, o altamente experimental Invisible Connections (1985); suas músicas são delicadas, expressam otimismo, tão coloridas quanto a capa do álbum. Aqui Vangelis explora sua veia sinfônica, com o uso de vocal lírico por exemplo. É um álbum para relaxar e espantar o mau humor; como não se sentir mais leve após ouvir Elsewhere?

Gostou? Outros destaques: The Will of the Wind, Glorianna (Hymn a la Femme), The Oracle of Apollo, Dial Out.


Antarctica (1983)


Mais uma trilha sonora, não tão conhecida quanto Chariots ou Conquest of Paradise, mas nem por isso inferior. Ela foi produzida para o filme japonês Nankyoku Monogatari, conhecido no ocidente como Antarctica. Ele é baseado na história real de uma dramática expedição científica no Pólo Sul, em 1958. Como é de se esperar, Vangelis cria uma atmosfera que aperfeiçoa os elementos sensitivos da obra cinematográfica; é possível imaginar paisagens sonoras mesmo sem ter assistido ao filme, como é o meu caso. Algumas das faixas são regularmente usadas para sonoplastia no rádio e na TV; há umas duas semanas eu ouvi Theme From Antarctica como música incidental de uma rádio evangélica. É ouvir essa música e ir correndo se agasalhar enquanto repentinamente começa a nevar lá fora.

Gostou? Outros destaques: Kinematic, Song of White, Deliverance.

Bônus:

Odyssey - The Definitive Collection (2003)


Aí você me pergunta: “Coletânea, Jennifer? E logo no fim do post! Era melhor ter recomendado apenas ela e pronto.” A verdade é que, para mim, compilações são super válidas na hora de conhecer o trabalho de um músico; inclusive é uma ótima prática ouvir primeiro uma boa coletânea. Mas ela não excluiu a possibilidade de ir à busca dos álbuns completos e apreciar a obra do artista de maneira aprofundada. A coletânea em questão, que reúne os maiores sucessos de Vangelis desde 1973, é uma das mais completas. Neste álbum há ótimas músicas que não citei, todas remasterizadas, como I’ll Find My Way Home da parceria com Jon Anderson (uma das minhas colaborações preferidas). Além dela, temas de outras trilhas sonoras, como La Petite Fille de La Mer e Main Theme From “Missing”. Vale a pena dar uma ouvida e constatar a riqueza e a variabilidade musicais de Vangelis ao longo do tempo. Comece por Celtic Dawn, a grande surpresa do álbum.

Gostou? Outros destaques: Main Theme From Cavafy (inédita), The Tao of Love, Titles from Chariots of Fire, Conquest of Paradise, L’Enfant.

"Tô rindo à toa pra você que acha que vou gastar meu fôlego assoprando 70 velinhas"