domingo, 30 de agosto de 2015

NBC's Hannibal: sobre finais e xícaras quebradas


“Fate and circumstance have returned us to this moment, when the teacup shatters.”

ATENÇÃO: o texto a seguir contém spoilers. Tentei deixá-los os mais leves possíveis, mas se você quer começar a ver a série sem nenhum conhecimento prévio, não recomendo a leitura.

A última ceia foi servida. Ontem a NBC transmitiu o derradeiro episódio de Hannibal, fechando um ciclo sangrento de três anos. Ao longo das temporadas os espectadores tiveram a oportunidade de conhecer o Dr. Lecter antes da alcunha de “Hannibal, o canibal” e se deixar envolver pela adaptação livre, porém digna e com ares épicos, da obra de Thomas Harris.
O cancelamento da série, inesperado para muitos, causou comoção na internet. Fannibals de todo o mundo ansiavam pela renovação da terceira temporada e pela continuidade da relação entre Will Graham e o Dr. Lecter. Vários fatores fizeram com que a xícara se quebrasse, dentre eles a baixa audiência e o fato de que Bryan Fuller, criador da série, não conseguiu os direitos da MGM para adaptar O Silêncio dos Inocentes – destruindo o sonho de quem queria ver Clarice Starling nas próximas temporadas. A campanha #SaveHannibal foi criada pelos produtores na tentativa de mobilizar outras plataformas de transmissão, como a Netflix e a Amazon, mas não adiantou: o bastardo da NBC chegou ao fim, não sem antes tirar os espectadores da zona de conforto e mudar a forma como se pensa em Deus, na morte e na crueldade humana.
Apesar das adversidades, é digno parabenizar a NBC pela liberdade de transmissão de uma série como essa, sobretudo por ser um canal da rede aberta cujos programas devem abranger um público acessível. Hannibal não é fácil de assistir, não somente pelas cenas explícitas de violência; a indigestão da série reside, principalmente, nos diálogos complexos e na mente do Dr. Lecter, que aplaude desabamentos de igrejas e questiona a bondade de Deus.

"Matar deve satisfazer a Deus, também... Ele faz isso o tempo todo."
Não se pretende, no entanto, fazer um discurso elitista; o programa começou com uma estrutura simples, de série de TV criminal, embora já houvesse destaque na estética visual repleta de metáforas e de recursos tecnológicos. Na primeira temporada é apresentado um momento anterior a Dragão Vermelho, o início de tudo. Surgem as figuras do FBI, dentre eles Will Graham, agente especial com altos graus de empatia e instabilidade emocional. O Dr. Lecter, até então com seus crimes encobertos, se envolve com Graham em uma relação que a princípio pretende ser de estrutura médico-paciente, mas alcança proporções perigosas e facilita o caráter manipulador do psiquiatra. Tudo isso intercalado por cenas onde o doutor prepara seus saborosos pratos gourmet de carne humana, acompanhado pelo melhor da música erudita ao fundo.
Como um bom vinho que com o tempo enriquece o sabor e as nuances do paladar, a série aos poucos atingiu uma maturação sem igual. O banho de sangue no final da segunda temporada é considerado uma das cenas mais brutais da TV e deixou os fãs extasiados, ansiosos para unir as pontas soltas. Esta season finale representa o fim da inocência para os personagens que se tornaram marionetes de Hannibal; com a transformação dolorosa, vem o desejo de vingança que conduz a primeira metade da terceira temporada.
Se Hannibal já era uma obra contemplativa, cercada de simbolismo e com uma atmosfera visual instigante, no terceiro ano esta característica transborda por todos os poros. Aquele primeiro ato metódico, do “serial killer da semana”, passa pela transição da segunda temporada e dá lugar a uma ação puramente densa e cerebral. Foi um exercício de paciência acompanhar o ritmo lento dos primeiros episódios, alguns diálogos se mostraram óbvios demais para os padrões da série e os flashbacks poderiam ter sido encurtados. No entanto, a degustação não se mostrou em vão quando Bryan e seus comparsas ofereceram ao público o prato principal: a saga do Dragão Vermelho. A impressão é de que a série inteira foi um prelúdio para este espetáculo, o aperitivo para o banquete – o que se evidencia nos títulos dos episódios a partir da segunda metade da temporada: de clássicos da culinária, passaram a ser intitulados de acordo com elementos do livro. Richard Armitage encarna o Francis Dolarhyde definitivo: a voz, o olhar, os movimentos animalescos do corpo, tudo o faz sumir sob a couraça do Grande Dragão Vermelho em busca de poder e redenção. Tem-se, enfim, a ação esperada de uma série policial, resgatando elementos da primeira temporada sem deixar o preciosismo de lado, e explorando as mudanças no duo Will-Hannibal.

Richard Armitage como Dolarhyde: "contemplem o Grande Dragão Vermelho"
É impossível discorrer sobre o desfecho da série (e dela como um todo) sem analisar a evolução do embate psicológico entre Graham e o Dr. Lecter. Aí está o coração, o sangue que bombeia todos os acontecimentos, reviravoltas e divagações. Hannibal vê em Will o potencial para se tornar alguém como ele, suga sua fragilidade e o torna seu nakama. O agente Graham sabe que Lecter é um monstro e, ao mesmo tempo em que sonha em matá-lo, se deixa seduzir pelo doutor e sucumbir aos instintos mais sombrios. O teor homoerótico do par é alimentado amplamente pelos fãs, sendo encorajado inclusive pelo próprio Bryan Fuller, o que torna a relação ainda mais subjetiva. Esse aspecto se desenvolve ao longo da terceira temporada e é levado às últimas consequências na series finale, onde Hannibal e Will se consolidam como uma variação doentia de star-crossed lovers, unidos pelo destino e por ele guiados ao inevitável e trágico final.


Nenhum recurso visual ou roteiro bem escrito seriam bem sucedidos sem um elenco preparado, de grande afinação com as propostas de Fuller. Todos os elogios devem ser prestados a Hugh Dancy e Mads Mikkelsen, que mostraram uma química impressionante na interação entre seus personagens. Dancy construiu um heroi às avessas, altruísta, porém condenado desde o começo. Suas expressões faciais, linguagem corporal e entonação valem a pena cada episódio. Mads Mikkelsen é um destaque à parte: incorporou sua alma na do Dr. Lecter e, com gestos finos e um rosto anguloso, moldou a besta mais bela de todas. Não cabem aqui comparações com Anthony Hopkins, pois são interpretações diferentes, uma tão brilhante quanto a outra. A ideia de Fuller de apresentar Hannibal como Satanás em pessoa elevou a série a um nível diferenciado, poético. Pois o Diabo também não se disfarça e caminha entre os mortais? Ele não provoca o Mal nos homens; ele o faz germinar, estripando a crueldade intrínseca a cada um de nós.


Resta aos fãs agora digerir o final e tornar a se empanturrar dele quando quiserem. Espera-se que novos convivas cheguem para apreciar o conto do anjo caído. Esta trilogia forçada poderia ser chamada também de tríptico, pois cada temporada se assemelha a um quadro, obras de arte contando uma história pincelada em sangue e aquarela. Foi gratificante acompanhar estes três anos preciosos e perturbadores. Fica a frustração pelo encerramento precoce e pela impossibilidade de ver Clarice Starling sendo adaptada à realidade da série; várias referências a ela nos livros foram atribuídas a outros personagens, bem como outras liberdades criativas, mas a essência da obra não foi alterada. Pacientes, esperamos o momento em que a xícara se reconstituirá e nos trará de volta o que perdemos. Sempre haverá um cômodo para Hannibal nos palácios de nossas memórias, onde ele nos lembrará constantemente que, se trilhamos o caminho com ele até a escuridão profunda, isto foi participação e não observação.


Um comentário:

  1. Excelente texto. É incrível como o Bryan conseguiu criar um 'sentimento' novo ao relacionar esses dois personagens que inicialmente possuíam ideais tão diferentes. E digo que ele criou esse sentimento novo porque eu ainda não consegui definir essa mistura de amor, ódio, raiva, amizade, encanto e se pensarmos tem mais coisa ainda. Acredito que se a Clarice fosse inserida essa relação entre os dois seria perdida, e esses três anos teriam sido em vão...

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