ATENÇÃO: o texto a seguir contém spoilers. Tentei deixá-los os
mais leves possíveis, mas se você quer começar a ver a série sem nenhum
conhecimento prévio, não recomendo a leitura.
A última ceia
foi servida. Ontem a NBC transmitiu o derradeiro episódio de Hannibal, fechando
um ciclo sangrento de três anos. Ao longo das temporadas os espectadores
tiveram a oportunidade de conhecer o Dr. Lecter antes da alcunha de “Hannibal,
o canibal” e se deixar envolver pela adaptação livre, porém digna e com ares
épicos, da obra de Thomas Harris.
O cancelamento
da série, inesperado para muitos, causou comoção na internet. Fannibals de todo o mundo ansiavam pela
renovação da terceira temporada e pela continuidade da relação entre Will
Graham e o Dr. Lecter. Vários fatores fizeram com que a xícara se quebrasse, dentre
eles a baixa audiência e o fato de que Bryan Fuller, criador da série, não
conseguiu os direitos da MGM para adaptar O Silêncio dos Inocentes – destruindo
o sonho de quem queria ver Clarice Starling nas próximas temporadas. A campanha
#SaveHannibal foi criada pelos produtores na tentativa de mobilizar outras plataformas
de transmissão, como a Netflix e a Amazon, mas não adiantou: o bastardo da NBC
chegou ao fim, não sem antes tirar os espectadores da zona de conforto e mudar
a forma como se pensa em Deus, na morte e na crueldade humana.
Apesar das
adversidades, é digno parabenizar a NBC pela liberdade de transmissão de uma
série como essa, sobretudo por ser um canal da rede aberta cujos programas devem
abranger um público acessível. Hannibal não é fácil de assistir, não somente pelas
cenas explícitas de violência; a indigestão da série reside, principalmente, nos
diálogos complexos e na mente do Dr. Lecter, que aplaude desabamentos de
igrejas e questiona a bondade de Deus.
"Matar deve satisfazer a Deus, também... Ele faz isso o tempo todo." |
Como um bom vinho
que com o tempo enriquece o sabor e as nuances do paladar, a série aos poucos atingiu
uma maturação sem igual. O banho de sangue no final da segunda temporada é
considerado uma das cenas mais brutais da TV e deixou os fãs extasiados, ansiosos
para unir as pontas soltas. Esta season finale representa o fim da inocência
para os personagens que se tornaram marionetes de Hannibal; com a transformação
dolorosa, vem o desejo de vingança que conduz a primeira metade da terceira
temporada.
Se Hannibal
já era uma obra contemplativa, cercada de simbolismo e com uma atmosfera visual
instigante, no terceiro ano esta característica transborda por todos os poros.
Aquele primeiro ato metódico, do “serial killer da semana”, passa pela
transição da segunda temporada e dá lugar a uma ação puramente densa e cerebral.
Foi um exercício de paciência acompanhar o ritmo lento dos primeiros episódios,
alguns diálogos se mostraram óbvios demais para os padrões da série e os flashbacks poderiam ter sido encurtados.
No entanto, a degustação não se mostrou em vão quando Bryan e seus comparsas
ofereceram ao público o prato principal: a saga do Dragão Vermelho. A impressão
é de que a série inteira foi um prelúdio para este espetáculo, o aperitivo para
o banquete – o que se evidencia nos títulos dos episódios a partir da segunda
metade da temporada: de clássicos da culinária, passaram a ser intitulados de
acordo com elementos do livro. Richard Armitage encarna o Francis Dolarhyde
definitivo: a voz, o olhar, os movimentos animalescos do corpo, tudo o faz
sumir sob a couraça do Grande Dragão Vermelho em busca de poder e redenção. Tem-se,
enfim, a ação esperada de uma série policial, resgatando elementos da primeira
temporada sem deixar o preciosismo de lado, e explorando as mudanças no duo
Will-Hannibal.
Richard Armitage como Dolarhyde: "contemplem o Grande Dragão Vermelho" |
É impossível
discorrer sobre o desfecho da série (e dela como um todo) sem analisar a evolução
do embate psicológico entre Graham e o Dr. Lecter. Aí está o coração, o sangue
que bombeia todos os acontecimentos, reviravoltas e divagações. Hannibal vê em
Will o potencial para se tornar alguém como ele, suga sua fragilidade e o torna
seu nakama. O agente Graham sabe que Lecter
é um monstro e, ao mesmo tempo em que sonha em matá-lo, se deixa seduzir pelo
doutor e sucumbir aos instintos mais sombrios. O teor homoerótico do par é
alimentado amplamente pelos fãs, sendo encorajado inclusive pelo próprio Bryan
Fuller, o que torna a relação ainda mais subjetiva. Esse aspecto se desenvolve
ao longo da terceira temporada e é levado às últimas consequências na series
finale, onde Hannibal e Will se consolidam como uma variação doentia de
star-crossed lovers, unidos pelo destino e por
ele guiados ao inevitável e trágico final.
Resta aos fãs
agora digerir o final e tornar a se empanturrar dele quando quiserem. Espera-se
que novos convivas cheguem para apreciar o conto do anjo caído. Esta trilogia
forçada poderia ser chamada também de tríptico, pois cada temporada se
assemelha a um quadro, obras de arte contando uma história pincelada em sangue
e aquarela. Foi gratificante acompanhar estes três anos preciosos e
perturbadores. Fica a frustração pelo encerramento precoce e pela
impossibilidade de ver Clarice Starling sendo adaptada à realidade da série; várias
referências a ela nos livros foram atribuídas a outros personagens, bem como outras
liberdades criativas, mas a essência da obra não foi alterada. Pacientes,
esperamos o momento em que a xícara se reconstituirá e nos trará de volta o que
perdemos. Sempre haverá um cômodo para Hannibal nos palácios de nossas memórias,
onde ele nos lembrará constantemente que, se trilhamos o caminho com ele até a
escuridão profunda, isto foi participação e não observação.
Excelente texto. É incrível como o Bryan conseguiu criar um 'sentimento' novo ao relacionar esses dois personagens que inicialmente possuíam ideais tão diferentes. E digo que ele criou esse sentimento novo porque eu ainda não consegui definir essa mistura de amor, ódio, raiva, amizade, encanto e se pensarmos tem mais coisa ainda. Acredito que se a Clarice fosse inserida essa relação entre os dois seria perdida, e esses três anos teriam sido em vão...
ResponderExcluir