domingo, 30 de agosto de 2015

NBC's Hannibal: sobre finais e xícaras quebradas


“Fate and circumstance have returned us to this moment, when the teacup shatters.”

ATENÇÃO: o texto a seguir contém spoilers. Tentei deixá-los os mais leves possíveis, mas se você quer começar a ver a série sem nenhum conhecimento prévio, não recomendo a leitura.

A última ceia foi servida. Ontem a NBC transmitiu o derradeiro episódio de Hannibal, fechando um ciclo sangrento de três anos. Ao longo das temporadas os espectadores tiveram a oportunidade de conhecer o Dr. Lecter antes da alcunha de “Hannibal, o canibal” e se deixar envolver pela adaptação livre, porém digna e com ares épicos, da obra de Thomas Harris.
O cancelamento da série, inesperado para muitos, causou comoção na internet. Fannibals de todo o mundo ansiavam pela renovação da terceira temporada e pela continuidade da relação entre Will Graham e o Dr. Lecter. Vários fatores fizeram com que a xícara se quebrasse, dentre eles a baixa audiência e o fato de que Bryan Fuller, criador da série, não conseguiu os direitos da MGM para adaptar O Silêncio dos Inocentes – destruindo o sonho de quem queria ver Clarice Starling nas próximas temporadas. A campanha #SaveHannibal foi criada pelos produtores na tentativa de mobilizar outras plataformas de transmissão, como a Netflix e a Amazon, mas não adiantou: o bastardo da NBC chegou ao fim, não sem antes tirar os espectadores da zona de conforto e mudar a forma como se pensa em Deus, na morte e na crueldade humana.
Apesar das adversidades, é digno parabenizar a NBC pela liberdade de transmissão de uma série como essa, sobretudo por ser um canal da rede aberta cujos programas devem abranger um público acessível. Hannibal não é fácil de assistir, não somente pelas cenas explícitas de violência; a indigestão da série reside, principalmente, nos diálogos complexos e na mente do Dr. Lecter, que aplaude desabamentos de igrejas e questiona a bondade de Deus.

"Matar deve satisfazer a Deus, também... Ele faz isso o tempo todo."
Não se pretende, no entanto, fazer um discurso elitista; o programa começou com uma estrutura simples, de série de TV criminal, embora já houvesse destaque na estética visual repleta de metáforas e de recursos tecnológicos. Na primeira temporada é apresentado um momento anterior a Dragão Vermelho, o início de tudo. Surgem as figuras do FBI, dentre eles Will Graham, agente especial com altos graus de empatia e instabilidade emocional. O Dr. Lecter, até então com seus crimes encobertos, se envolve com Graham em uma relação que a princípio pretende ser de estrutura médico-paciente, mas alcança proporções perigosas e facilita o caráter manipulador do psiquiatra. Tudo isso intercalado por cenas onde o doutor prepara seus saborosos pratos gourmet de carne humana, acompanhado pelo melhor da música erudita ao fundo.
Como um bom vinho que com o tempo enriquece o sabor e as nuances do paladar, a série aos poucos atingiu uma maturação sem igual. O banho de sangue no final da segunda temporada é considerado uma das cenas mais brutais da TV e deixou os fãs extasiados, ansiosos para unir as pontas soltas. Esta season finale representa o fim da inocência para os personagens que se tornaram marionetes de Hannibal; com a transformação dolorosa, vem o desejo de vingança que conduz a primeira metade da terceira temporada.
Se Hannibal já era uma obra contemplativa, cercada de simbolismo e com uma atmosfera visual instigante, no terceiro ano esta característica transborda por todos os poros. Aquele primeiro ato metódico, do “serial killer da semana”, passa pela transição da segunda temporada e dá lugar a uma ação puramente densa e cerebral. Foi um exercício de paciência acompanhar o ritmo lento dos primeiros episódios, alguns diálogos se mostraram óbvios demais para os padrões da série e os flashbacks poderiam ter sido encurtados. No entanto, a degustação não se mostrou em vão quando Bryan e seus comparsas ofereceram ao público o prato principal: a saga do Dragão Vermelho. A impressão é de que a série inteira foi um prelúdio para este espetáculo, o aperitivo para o banquete – o que se evidencia nos títulos dos episódios a partir da segunda metade da temporada: de clássicos da culinária, passaram a ser intitulados de acordo com elementos do livro. Richard Armitage encarna o Francis Dolarhyde definitivo: a voz, o olhar, os movimentos animalescos do corpo, tudo o faz sumir sob a couraça do Grande Dragão Vermelho em busca de poder e redenção. Tem-se, enfim, a ação esperada de uma série policial, resgatando elementos da primeira temporada sem deixar o preciosismo de lado, e explorando as mudanças no duo Will-Hannibal.

Richard Armitage como Dolarhyde: "contemplem o Grande Dragão Vermelho"
É impossível discorrer sobre o desfecho da série (e dela como um todo) sem analisar a evolução do embate psicológico entre Graham e o Dr. Lecter. Aí está o coração, o sangue que bombeia todos os acontecimentos, reviravoltas e divagações. Hannibal vê em Will o potencial para se tornar alguém como ele, suga sua fragilidade e o torna seu nakama. O agente Graham sabe que Lecter é um monstro e, ao mesmo tempo em que sonha em matá-lo, se deixa seduzir pelo doutor e sucumbir aos instintos mais sombrios. O teor homoerótico do par é alimentado amplamente pelos fãs, sendo encorajado inclusive pelo próprio Bryan Fuller, o que torna a relação ainda mais subjetiva. Esse aspecto se desenvolve ao longo da terceira temporada e é levado às últimas consequências na series finale, onde Hannibal e Will se consolidam como uma variação doentia de star-crossed lovers, unidos pelo destino e por ele guiados ao inevitável e trágico final.


Nenhum recurso visual ou roteiro bem escrito seriam bem sucedidos sem um elenco preparado, de grande afinação com as propostas de Fuller. Todos os elogios devem ser prestados a Hugh Dancy e Mads Mikkelsen, que mostraram uma química impressionante na interação entre seus personagens. Dancy construiu um heroi às avessas, altruísta, porém condenado desde o começo. Suas expressões faciais, linguagem corporal e entonação valem a pena cada episódio. Mads Mikkelsen é um destaque à parte: incorporou sua alma na do Dr. Lecter e, com gestos finos e um rosto anguloso, moldou a besta mais bela de todas. Não cabem aqui comparações com Anthony Hopkins, pois são interpretações diferentes, uma tão brilhante quanto a outra. A ideia de Fuller de apresentar Hannibal como Satanás em pessoa elevou a série a um nível diferenciado, poético. Pois o Diabo também não se disfarça e caminha entre os mortais? Ele não provoca o Mal nos homens; ele o faz germinar, estripando a crueldade intrínseca a cada um de nós.


Resta aos fãs agora digerir o final e tornar a se empanturrar dele quando quiserem. Espera-se que novos convivas cheguem para apreciar o conto do anjo caído. Esta trilogia forçada poderia ser chamada também de tríptico, pois cada temporada se assemelha a um quadro, obras de arte contando uma história pincelada em sangue e aquarela. Foi gratificante acompanhar estes três anos preciosos e perturbadores. Fica a frustração pelo encerramento precoce e pela impossibilidade de ver Clarice Starling sendo adaptada à realidade da série; várias referências a ela nos livros foram atribuídas a outros personagens, bem como outras liberdades criativas, mas a essência da obra não foi alterada. Pacientes, esperamos o momento em que a xícara se reconstituirá e nos trará de volta o que perdemos. Sempre haverá um cômodo para Hannibal nos palácios de nossas memórias, onde ele nos lembrará constantemente que, se trilhamos o caminho com ele até a escuridão profunda, isto foi participação e não observação.


quinta-feira, 22 de maio de 2014

Coquetel Musical #1: The Dark Side of the Moon - Pink Floyd

Voltei para varrer a poeira deste blog-cabaré-aleatório. Sei que negligenciei o coitado por muito tempo (mais de um ano!), portanto vou tentar atualizá-lo com a maior frequência possível a partir de agora e assim atrair a freguesia.
Nesta "ressurreição" do blog, inaugurarei uma seção: a de resenhas musicais. Sempre que eu ouvir algo novo - ou sentir vontade de analisar um álbum que já ouvi, depende do meu estado de espírito - estarei postando neste espaço as minhas impressões acerca da obra musical escolhida. Aceito sugestões dos leitores (Jennifer não se iluda) para futuras resenhas, a caixinha de comentários está dando sopa aí.
Segue a resenha adaptada do clássico The Dark Side of the Moon, postada em um antigo blog meu quando eu era uma criança juvenil criada a leite de pêra. Como devem ter deduzido, tenho um longo histórico de abandono de blogs; se este entrar para as estatísticas, não se surpreendam.
Sem mais firulas, vamos lá:

Resenha postada originalmente no finado blog Palavra Chave, em 03/12/10



Vou começar com uma “pseudo-resenha” musical, já que ouvir música é o que mais tenho feito ultimamente, mais do que já ouço normalmente. E já de cara escrevo sobre um mega-ultra-power clássico não só do Rock ‘N’ Roll, mas também da música em geral: Dark Side of the Moon (1973), do Pink Floyd. É difícil falar sobre algo que gostamos muito sem cair no lugar comum; mas tentarei deixar aqui minhas impressões sobre este álbum tão importante e tão PERFEITO! (rs)
Trata-se de um álbum conceitual que lida, antes de tudo, com a vida. E a vida nos traz muitos aspectos, sejam eles positivos ou negativos: a morte, o tempo, a loucura, o dinheiro... todos eles são abordados, e com uma profundidade e uma sensibilidade tão grandes que é impossível não se envolver pelo clima sombrio e ao mesmo tempo otimista. Fico imaginando o impacto deste bolachão quando foi lançado, não só pelas letras, mas principalmente pelo som em si (recursos inovadores para a época como colagens de sons, transposição de vozes e equipamentos eletrônicos estão presentes aqui). Além do mais, o Floyd tentava se desprender da sonoridade psicodélica tão influenciada por Syd Barrett nos primeiros álbuns, buscando uma identidade.
O álbum já começa de maneira atípica, com a pequena instrumental Speak To Me: batidas ritmadas de um coração seguidas por colagens de vários sons das músicas seguintes (risadas, caixas registradoras); um grito desesperado de mulher dá lugar a Breathe, uma das minhas preferidas. A cadência entre os instrumentos dá serenidade, os synths “choram”, e logo ouve-se o vocal duplicado e harmonioso de David Gilmour.
On The Run é mais uma instrumental, eletrônica e com um quê de psicodelia. Logo depois dela somos apresentados a uma das músicas mais conhecidas da carreira do Floyd, Time: relógios dão alarme simultaneamente, uma passagem calma e o famoso primeiro verso cantado por Dave, com vocal muito diferente do começo do álbum: está forte, provocativo, irônico, e a letra é uma das melhores já criadas por Roger Waters. O que dizer do solo dessa música? Simplesmente de outro mundo. Não é à toa que Gilmour é considerado um dos guitarristas que possuem mais feeling; você consegue sentir ele pôr toda a sua alma aqui (ficou meloso, né? Abafa!). O final é uma pequena volta ao tema instrumental de Breathe.
Após esse momento de epifania, o saudoso Rick Wright inicia The Great Gig In The Sky com um lindo pianinho, e uma voz ao fundo falando sobre o medo da morte. As vocalizações da convidada Clare Torry dão o tom de desespero e morbidez de que a música precisa, criando assim mais uma linda e obscura peça.
Caixas registradoras, a linha de baixo inconfundível... Adivinhou, né? Dificilmente alguém não conhece o começo de Money, de longe a mais comercial do Dark Side, o que acentua ainda mais a ironia contida nela (tipo, como assim uma música com letra afiadíssima criticando a ganância humana ser um dos carros-chefes de vendas do álbum?). Destaque para o solo de sax executado por Dick Parry, que também já tocou com Gilmour em carreira solo.
Chegamos à minha preferida do álbum, em todos os sentidos: Us and Them. Aqui Dick Parry também dá o ar de sua graça, tocando um saxofone melancólico no começo e ao longo da música. A letra e o refrão me causam uma reação quase catártica, e a progressão entre ele e os versos calmos é bem construída, sempre com backing vocals certos na hora certa.
Any Colour You Like é mais uma (e a última) instrumental. Rick Wright e David Gilmour são as figurinhas principais aqui, apoiados pela cozinha sempre eficiente de Rogério Águas e Nick Mason. Mais um solo sensacional de Gilmour, que eu definiria como meio “líquido” (não me perguntem onde arrumei esse adjetivo).
Enfim, as duas últimas músicas: Brain Damage e Eclipse. Falo das duas de uma vez só por que elas são unidas, assim como “Speak To Me/Breathe”. “Brain Damage” é talvez a mais triste e fala sobre a loucura, acredito que muito dessa abordagem se refere à Syd Barrett (que também ganhou referências em outros álbuns do Floyd). Ah, a risadinha do lunático me dá um plus de tristeza, não sei por quê.
“Eclipse” vem logo em seguida e eu gosto de compará-la a uma bomba prestes a explodir: começa perturbador e vai crescendo até terminar explosivamente, seguido por sussurros e as mesmas batidas do coração do começo, porém mais fracas, indicando o final.
Fiz esta resenha escutando o próprio álbum, e a sensação que fica depois do último batimento cardíaco é a de que estamos ouvindo pela primeira vez, um sentimento de redescoberta. Os sons ficam ecoando na sua mente, como se você tivesse queimado um papel e estivesse contemplando as cinzas. Ou como uma fênix: renasce das cinzas, e nunca é do mesmo jeito de antes. Não são essas impressões que fazem os grandes clássicos?
Pra terminar, basta dizer que é um álbum seminal, tão inovador que até hoje soa atual, e continuará influenciando milhares de gerações, o contraponto perfeito entre sucesso comercial e a arte pura. Se já ouviu, ouça de novo! Se não ouviu, tenha um pouco de dignidade consigo mesmo e baixe, faça rolo com Zé do CD, enfim, dê um jeito de escutar!



"There is no dark side of the moon really.
Matter of fact it's all dark."


Line up:

  • David Gilmour - vocais, guitarra, sintetizadores e produção
  • Nick Mason - bateria, percussão, efeitos e produção
  • Richard Wright - teclados, vocais, sintetizadores e produção
  • Roger Waters - baixo, vocais, sintetizadores, efeitos e produção
  • Lesley Duncan - vocal de apoio
  • Doris Troy - vocal de apoio
  • Liza Strike - vocal de apoio
  • Dick Parry - saxofone
  • Barry St. John - vocal de apoio
  • Clare Torry - vocal em "The Great Gig in the Sky"



segunda-feira, 15 de abril de 2013

Além das carruagens de fogo - Vangelis, 70 aninhos


Texto publicado originalmente em 29/03/13, como colaboração para I Want To Be A Machine


No dia 29 de abril de 1943, há exatas 70 primaveras – ou outonos, se considerarmos a estação do mês –, nascia o músico e compositor grego Vangelis. O nome dele deve parecer familiar a você. Se não, vou ajudá-lo com algumas palavras-chave: maratona, trilha sonora, Olimpíadas. Ainda difícil? Vamos, faça um esforço: imagine-se correndo por uma estrada, ou uma praia deserta, onde preferir. Agora deixe a cena em câmera lenta. Que música você colocaria ao fundo para dar um clima? Ahá, acho que adivinhei. Se nada ainda lhe veio à mente (não é querendo subestimar sua inteligência mas já subestimando), recorde a performance do Rowan Atkinson durante a abertura dos Jogos Olímpicos de Londres e grite "BINGO!" 

Até o Mr. Bean tá ligado nas parada

Estas referências, tanto do imaginário popular quanto da mídia, nem de longe podem mensurar o patamar alcançado por Chariots of Fire na cultura pop e na música em geral. A influência é tanta que grande parte das pessoas acaba esquecendo que por trás de um elemento tão icônico há uma pessoa, com nome, sobrenome e muitos outros trabalhos interessantes, até melhores na minha humilde opinião. No caso, Evángelos Odysséas Papathanassiou (repita tudo bem rápido três vezes sem morrer sufocado), ou simplesmente Vangelis. Tal fenômeno não ocorre apenas com Chariots of Fire, cuja trilha sonora deu a Vangelis, em 1982, o Óscar de Melhor Trilha Sonora Original: tenho certeza de que em algum momento da vida você ouviu alguma música do Vangelis sem saber que era dele. Ele parece ser o preferido de programas esotéricos de rádio e policiais da TV, por exemplo (exemplos no fim do post, aguarde).
Agora que você foi avisado que o tio Evángelos observa todos os seus passos em segredo (MEDA!11!), vou parar de fazer rodeios; vamos saber mais sobre essa joia do Mediterrâneo, esse glorioso filho do deus Apolo, esse... Ok Jennifer, o pessoal já entendeu.
Nascido em Vólos, na Grécia, Vangelis pode ser considerado um talento genuíno. Desde pequeno mostrou aptidão para a música. Ele sempre conta em entrevistas sobre memórias mais tenras: a imagem de si mesmo aos quatro anos, sentado ao piano, tocando sem a ajuda de ninguém. Nessa idade ele começou a compor e não parou mais, sendo dois anos mais tarde aceito em uma escola de música em Atenas. Um fato curioso é que Vangelis nunca aprendeu a ler notação musical; sua capacidade de percepção era tal que ele tocava as músicas "de cabeça", sem haver a necessidade de acompanhar a partitura. De fato, o autodidatismo e o individualismo influenciaram acentuadamente as composições de Vangelis ao longo da carreira.



O som de Vangelis é geralmente taxado de New Age, mas não se engane; artista completo como é, sua obra não pode ser limitada de tal forma. Nos anos 1960 o músico passou pelo grupo The Forminx, de veia pop, e posteriormente pelo Aphrodite's Child, banda grega de rock progressivo formada em Paris. Foi como membro do Aphrodite’s que o talento de Vangelis adquiriu notoriedade internacional; após o fim do grupo, em 1972, Vangelis se dedicou à carreira solo e pode alçar voos mais altos. Esta nova fase de produção musical ficou marcada pela sonoridade eletrônica, com o uso promissor de sintetizadores. No entanto, Vangelis nunca aderiu a rótulos; ele possui trabalhos que vão desde o flerte com o rock progressivo e com a música étnica grega (Earth, o primeiro álbum solo) ao experimentalismo (Invisible Connections e Beaubourg, os mais controversos da discografia). Com preferência por temas cósmicos e peças instrumentais, Vangelis se consolidou como grande expoente da música ambiente. Até hoje ele é consagrado por suas trilhas sonoras, ramo pelo qual enveredou antes da carreira solo; além de Chariots of Fire (1981), pode-se destacar a trilha do filme Blade Runner e a de 1492 – Conquest of Paradise. Outros trabalhos de música incidental dignos de nota são o da série de TV Cosmos, o tema da Copa do Mundo de 2002 e os documentários de Frédéric Rossif sobre a vida selvagem, como L'Apocalypse des animaux.
Nos últimos anos, Vangelis tem se dedicado como nunca a trilhas para filmes e documentários. Ele também trabalhou em relançamentos de seus maiores sucessos, como a edição de aniversário de Blade Runner (2007) e a versão de Chariots of Fire para o teatro, datada do ano passado. Para comemorar seu aniversário e os mais de 50 anos de carreira, segue uma pequena playlist de introdução à obra do mestre. Fica como aperitivo, já que a discografia é gigante, sem contar os trabalhos anteriores e as colaborações (eu mesma não posso afirmar com prioridade que ouvi tudo). Procurei fugir do óbvio, afinal um dos objetivos é mostrar que a relevância da obra de Vangelis pode ser exemplificada em suas músicas mais famosas, mas não limitada a elas.
Você, fã do Vangelis ou não, que por acaso esbarrou com este humilde texto nas ondas da interwebs, não se acanhe: desça a lenha deixe sua opinião e sugestões nos comentários. Agora cheguem mais, entre na carruagem e vamos lá!

Discretamente observando os pobres mortais


Spiral (1977)


Este foi o primeiro álbum de Vangelis que ouvi. Não poderia haver começo melhor; é uma das joias mais brilhantes da coleção. Aqui, Vangelis demonstra total domínio dos sintetizadores e cria uma atmosfera inigualável, que envolve o ouvinte da primeira à última faixa. É um trabalho que denota de maneira magistral os aspectos sonoros que consagraram o artista: som essencialmente eletrônico, futurista, inspirado por um conceito cósmico – no caso o da filosofia taoísta, onde a natureza do universo se move em uma dança de espirais.
Fica To The Unknown Man como preview do álbum. Uma dica: ouça com lencinhos ao lado. É uma tapa com luva de pelica em quem afirma que sintetizadores não são instrumentos de verdade e por isso incapazes de suscitar emoções genuínas.

Gostou? Outros destaques: Dervish D e Spiral.


Albedo 0.39 (1976)


A trilha sonora perfeita para uma viagem espacial: esse é o Albedo. Um clássico definitivo da discografia do Vangelis, sem dúvida. A popularidade das faixas comprova isso; aposto que Alpha serviu de música de fundo para todos os programas de rádio religiosos do mundo, sem contar os de horóscopo. Para compor o álbum, Vangelis se baseou na astronomia e na física especial, inclusive tendo algumas das músicas incluídas em episódios da supracitada série Cosmos, de Carl Sagan. Daqueles discos para apreciar sem interrupções, com fones de ouvido, imerso nas nuances sonoras. Dá para imaginar uma aventura de ficção científica ouvindo o Albedo 0.39.
Ouça a primeirona, Pulstar, e verifique que eu não exagerei.

Gostou? Outros destaques: Alpha, Main Sequence, Nucleogenesis (partes 1 e 2).


Blade Runner (1994)


Tão célebre quanto Chariots of Fire, Blade Runner chega a ser uma obra-prima à parte do filme que a originou, a adaptação homônima do diretor Ridley Scott para o livro Do Androids Dream of Electric Sheep?, de Philip K. Dick. A despeito de o filme ter sido lançado em 1982, a versão oficial da trilha sonora saiu apenas em 1994, tendo algumas faixas divulgadas em compilações anteriores. Com sintetizadores soturnos e melodias que evocam uma erudição melancólica, Vangelis construiu um trabalho que casa perfeitamente com o futurismo decadente da película. É possível se sentir na pele do policial Deckard, preso na Los Angeles pós-apocalíptica, tomado por um misto de angústia e esperança. Cuidado com os replicantes à solta por aí...
Bem, tudo o mais que eu disser parecerá redundante para descrever a qualidade e a importância desta obra de arte. Sinta o gostinho com BladeRunner (End Titles) e a música falará por si só. 

Gostou? Outros destaques: T.O.D.A.S.
Obs.: Vale ouvir a edição de 25 anos do álbum, lançada em 2007. Ela contém 3 CDs, sendo os dois últimos com material inédito.


Direct (1988)


Após uma breve pausa na produção, durante a qual o famoso estúdio Nemo em Londres fechou as portas, Vangelis retornou com este álbum. Em minha opinião ele é um dos mais subestimados da discografia. É o marco de uma nova fase na composição musical de Vangelis: há a predominância dos sintetizadores, porém em um formato mais popular – o que não significa que tenha perdido a qualidade, muito pelo contrário. Direct tem pouquíssimo em comum com o trabalho anterior, o altamente experimental Invisible Connections (1985); suas músicas são delicadas, expressam otimismo, tão coloridas quanto a capa do álbum. Aqui Vangelis explora sua veia sinfônica, com o uso de vocal lírico por exemplo. É um álbum para relaxar e espantar o mau humor; como não se sentir mais leve após ouvir Elsewhere?

Gostou? Outros destaques: The Will of the Wind, Glorianna (Hymn a la Femme), The Oracle of Apollo, Dial Out.


Antarctica (1983)


Mais uma trilha sonora, não tão conhecida quanto Chariots ou Conquest of Paradise, mas nem por isso inferior. Ela foi produzida para o filme japonês Nankyoku Monogatari, conhecido no ocidente como Antarctica. Ele é baseado na história real de uma dramática expedição científica no Pólo Sul, em 1958. Como é de se esperar, Vangelis cria uma atmosfera que aperfeiçoa os elementos sensitivos da obra cinematográfica; é possível imaginar paisagens sonoras mesmo sem ter assistido ao filme, como é o meu caso. Algumas das faixas são regularmente usadas para sonoplastia no rádio e na TV; há umas duas semanas eu ouvi Theme From Antarctica como música incidental de uma rádio evangélica. É ouvir essa música e ir correndo se agasalhar enquanto repentinamente começa a nevar lá fora.

Gostou? Outros destaques: Kinematic, Song of White, Deliverance.

Bônus:

Odyssey - The Definitive Collection (2003)


Aí você me pergunta: “Coletânea, Jennifer? E logo no fim do post! Era melhor ter recomendado apenas ela e pronto.” A verdade é que, para mim, compilações são super válidas na hora de conhecer o trabalho de um músico; inclusive é uma ótima prática ouvir primeiro uma boa coletânea. Mas ela não excluiu a possibilidade de ir à busca dos álbuns completos e apreciar a obra do artista de maneira aprofundada. A coletânea em questão, que reúne os maiores sucessos de Vangelis desde 1973, é uma das mais completas. Neste álbum há ótimas músicas que não citei, todas remasterizadas, como I’ll Find My Way Home da parceria com Jon Anderson (uma das minhas colaborações preferidas). Além dela, temas de outras trilhas sonoras, como La Petite Fille de La Mer e Main Theme From “Missing”. Vale a pena dar uma ouvida e constatar a riqueza e a variabilidade musicais de Vangelis ao longo do tempo. Comece por Celtic Dawn, a grande surpresa do álbum.

Gostou? Outros destaques: Main Theme From Cavafy (inédita), The Tao of Love, Titles from Chariots of Fire, Conquest of Paradise, L’Enfant.

"Tô rindo à toa pra você que acha que vou gastar meu fôlego assoprando 70 velinhas"